Muito se fala, em nossos dias, sobre espiritualidade: do catequista, do missionário, dos líderes, dos ministros, dos agentes de pastoral. O que é, portanto, a “espiritualidade” e como vivê-la no dia a dia de nossa ação pastoral?
O conceito de espiritualidade dentro da Igreja teve, durante muito tempo, uma compreensão ligada aos mosteiros. Era quase um monopólio dos monges, daqueles que se retiravam do mundo, para viver em contemplação. A partir da reforma das ordens religiosas, esse conceito sofre modificações, sobretudo no que diz respeito à proposta espiritual da Companhia de Jesus, no século XVI, feita de uma síntese entre contemplação e ação, unindo a comunhão mais profunda com o mistério às atividades realizadas no meio da vida corrente.i
Devido ao surgimento de muitos movimentos de espiritualidade, principalmente com o advento do pentecostalismo e neopentecostalismo, que acentuam a perspectiva individualista, muita gente a entende como um valor individual, orientado para o aperfeiçoamento pessoal ou como busca da “vida interior”. Um modelo de espiritualidade desenraizado do chão, distante da realidade, mais parecendo uma fuga do compromisso com o mundo. Essa espiritualidade é compreendida como “seguimento espiritualista de Jesus”, caracterizado pela insensibilidade à presença e às necessidades das pessoas reais e concretas.ii O aparente sucesso desses movimentos acabou por distorcer a compreensão da verdadeira espiritualidade.
Na América Latina, dá-se uma nova maneira de pensar e viver a espiritualidade: que compreende solidariedade e gestos concretos em favor dos pobres e oprimidos. Uma espiritualidade vivida no dia a dia e comprometida com a realidade social. O teólogo Gustavo Gutierrez a sintetiza como “um modo de ser cristão no mundo”.
“Espiritualidade” é deixar-se guiar, a cada instante, pelo Espírito de Deus, que se manifestou em Jesus Cristo ressuscitado, que anima a nossa caminhada na edificação do Reino de Deus. “É, portanto, um caminho estreitamente ligado à vida concreta. No nosso caso, a complexa realidade brasileira é o lugar onde o agente de pastoral é chamado a viver a cada dia a espiritualidade cristã e a deixar-se conduzir pelo mesmo Espírito que animou Jesus e o levou a inserir-se na trama humana e assumir o risco da história”iii.
O Papa Francisco define-a como abrir-se sem medo à ação do Espírito Santo, que em Pentecostes “faz os Apóstolos saírem de si mesmos e transforma-os em anunciadores das maravilhas de Deus, que cada um começa a entender na própria língua. Além disso, o Espírito Santo infunde a força para anunciar a novidade do Evangelho com ousadia, em voz alta e em todo o tempo e lugar” (EG. 259).
Uma espiritualidade a partir de Jesus Cristo
Não falamos aqui de uma espiritualidade qualquer, mas de uma “espiritualidade cristã”, que é viver guiados pelo Espírito de Deus que animou Jesus e o enviou em missão: “o Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me consagrou com a unção para anunciar a Boa Notícia aos pobres; enviou-me para proclamar a libertação aos presos e aos cegos a recuperação da vista; para libertar os oprimidos, e para proclamar um ano de graça do Senhor” (Lc. 4,18-19).
Para ser discípulo missionário de Jesus, não basta professar a fé, elevar a alma a Deus ou fazer retiros espirituais. É necessário um encontro pessoal com Ele, compartilhar do seu caminho, deixar-se orientar pelo mesmo Espírito que o guiou: “O Espírito Santo, que o Pai vai enviar em meu nome, ensinará a vocês todas as coisas e fará vocês lembrarem tudo o que eu lhes disse” (Jo. 14,26).
A nossa ação pastoral e evangelizadora deve orientar-se pelas palavras do Papa Francisco: ”não servem as propostas místicas desprovidas de um vigoroso compromisso social e missionário, nem os discursos e ações sociais e pastorais sem uma espiritualidade que transforme o coração. Estas propostas parciais e desagregadoras alcançam só pequenos grupos e não têm força de ampla penetração, porque mutilam o Evangelho... Sem momentos prolongados de adoração, de encontro orante com a Palavra, de diálogo sincero com o Senhor, as tarefas facilmente se esvaziam de significado, quebrantamo-nos com o cansaço e as dificuldades, e o ardor apaga-se” (EG. 262).
O Papa lembra ainda que a Igreja não pode dispensar a oração, principalmente nos grupos de oração, de intercessão, de leitura orante da Palavra, as adorações da Eucaristia. Mas ao mesmo tempo alerta para o risco de uma espiritualidade intimista e individualista, que pode levar as pessoas a usarem esses momentos como desculpa para não dedicarem a vida à missão, refugiando-se numa falsa espiritualidade (EG. 262).
“A espiritualidade, portanto, é aquilo que nos anima e nos impulsiona à vida cristã. É fruto de nossa relação com Deus, a qual se manifesta nas atitudes cotidianas e no serviço ao próximo. Assim, falar de espiritualidade não é falar de uma parte da vida, mas de toda a vida. É a dimensão espiritual que alicerça o ser cristão na experiência de Deus manifestado em Jesus e o conduz, pelo Espírito, nos caminhos de um amadurecimento profundo” iv.
Assim, a espiritualidade cristã não se reduz a um momento ou um aspecto da vida, mas abarca todo o nosso ser. É uma exigência de todo batizado que, no encontro pessoal com Jesus Cristo, descobre a sua missão no mundo e sua vocação à santidade. O lugar de vivência da espiritualidade não é outro senão o mundo, a história humana, os conflitos, o lugar onde Deus nos colocou.
“A opacidade e o jogo de luz e sombras de que é feita a história humana passa a ser para todo aquele ou aquela que caminha segundo o Espírito, no seguimento de Jesus, buscando fazer a vontade do Pai, uma permanente epifania, uma constante redescoberta de que tudo – a dor e a alegria, a angústia e a esperança – tudo é graça” v.
Notas Bibliográficas
i Maria Clara Bingemer. In "Viver como crentes no mundo em mudança", ed. Paulinas.
ii Pe. Valdir José de Castro. In “A espiritualidade no cotidiano”. Revista Vida Pastoral maio-junho de 1995.
iii Idem, ibidem
iv Rodrigo Borgheti. “Por uma espiritualidade encarnada...” Revista Vida Pastoral maio-junho de 2010
v Maria Clara Bingemer. In "Viver como crentes no mundo em mudança", ed. Paulinas
Para refletir com seu grupo ou equipe pastoral
1. A partir desta reflexão, o que você entende por espiritualidade?
2. Em sua comunidade existem movimentos de espiritualidade? Quais?
3. Como viver a espiritualidade cristã dentro de nossa realidade brasileira, marcada por corrupção, injustiça, exclusão social e miséria?
Pe. José Geraldo de Oliveira
Vigário Episcopal da Região Centro