Côn. Lauro Sérgio Versiani Barbosa
O Papa Francisco, no seguimento de Jesus, expressou claramente o seu desejo de “uma Igreja pobre para os pobres” (EG 198). A instituição da Eucaristia na Última Ceia é um dos atos fundacionais da Igreja por parte de Jesus. Ela se insere numa cadeia de refeições de Jesus com os pobres e pecadores, demonstrando a vontade de Deus de acolher a todos em seu Reino (Mt 14,13-21; Mc 6,31-44; Lc 9,10-17; Jo 6,1-13; Mt 15,32-39; Mc 8,1-10; Mc 2,15-17; Lc 5,27-32; Lc 7,36-50; Lc 15,1-32; Lc 19,1-10). Por outro lado, a Última Ceia se distingue da tradição do estar à mesa de Jesus com os seus, não só por ser a sua despedida, mas por ser o pleno cumprimento e atualização do tempo da salvação, que a Igreja confessa com assombro reverente em sua liturgia: “Eis o Mistério da Fé” (Mysterium Fidei)! “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” (Missal Romano).
“A Igreja celebra a Eucaristia, mas a Eucaristia faz a Igreja” é um axioma clássico da Teologia da Eucaristia. A Igreja vive da Eucaristia, nos recordava São João Paulo II, a Eucaristia é o “próprio núcleo do mistério da Igreja” (EE 1). Desde os seus primórdios a Igreja se reúne diariamente para a refeição em comum, conforme lemos nos Atos dos Apóstolos (At 2,46; At 6,1), continuando o que Jesus inaugurou com o seu gesto e as suas palavras: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19; 1 Cor 11,25). Assim, a Igreja é a comunidade messiânica que celebra a memória do Senhor, proclamando a obra da salvação e suplicando ao Senhor que a leve a bom termo. A Eucaristia é o sacramento da autodoação salvífica de Jesus Cristo. Trata-se do seu “dom por excelência” (EE 11). Memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus, que deu a vida por todos nós e inaugurou definitivamente o reinado de Deus na história, na força do Espírito para glória do Pai. A Eucaristia não só evoca o acontecimento central da nossa salvação, mas o torna presente e atuante, penhor da glória futura: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54).
Assim se expressa o Concílio Vaticano II a propósito do mistério da Eucaristia: “Na Última Ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador instituiu o Sacrifício Eucarístico de Seu Corpo e Sangue. Por ele perpetua pelos séculos, até que volte, o Sacrifício da Cruz, confiando deste modo à Igreja, sua dileta Esposa, o memorial de sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em alimento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória” (SC 47).
Portanto, a Eucaristia torna sacramentalmente presente e atuante o sacrifício reconciliador de Cristo no Calvário, oferecido ao Pai por toda a humanidade. A este sacrifício se associa a Igreja que celebra a Eucaristia, oferecendo-se com e alimentando-se do Corpo de Cristo, fundamento da unidade-diversidade da própria Igreja (LG 11). No banquete eucarístico, “a eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e sangue do Senhor” (EE 16). O Senhor nos alimenta, nos concede o seu Espírito e faz de nós um só corpo, edificando a sua Igreja (1 Cor 10,17). Esta Igreja é chamada a dar a vida pelos irmãos no seguimento de Jesus. A comunidade que participa do banquete eucarístico deve se tornar o corpo vivo do Senhor Ressuscitado. Já dizia o teólogo Joseph Ratzinger em 1963: “a meta suprema da Eucaristia não é a transformação dos dons... é a transformação dos homens viventes no corpo de Cristo”. A Eucaristia como refeição fraterna e festiva, memorial da Páscoa do Senhor, compromete a vida na solidariedade com os que sofrem: os pobres, os pecadores, os enfermos, os excluídos e marginalizados de todo o tipo. A Eucaristia é, pois, promessa de uma humanidade nova, possui um significado escatológico. Quem comunga do Corpo e Sangue do Senhor tem uma responsabilidade histórica de transformação deste mundo, até com o sacrifício da própria vida, a exemplo e fortalecido pelo sacrifício de Jesus, para que o mundo seja de Deus na fraternidade do Reino.
Pela Eucaristia a Igreja é o corpo do Ressuscitado, a comunidade de fé que oferece a vida pelos outros em solidariedade, inclui os pobres e marginalizados, dá testemunho profético do Reino de Deus, cultivando a memória subversiva de Jesus e continuando a sua presença no mundo para a salvação de todos. A Igreja é “o povo reunido na unidade do Pai e do Filho e do Espírito Santo” (São Cipriano, apud. LG 4). O Pai é aquele que revelou o Reino aos pobres e pequenos no Espírito Santo (Mt 11,25-27; Lc 10,21-22). O Espírito Santo é aquele que ungiu Jesus para evangelizar os pobres (Lc 4,14-22). A presença de Cristo na Igreja pela Eucaristia possibilita que ela reconheça a presença de Cristo no pobre (Mt 25, 31-46), se coloque no seguimento de Jesus, sob a Palavra de Deus, como servidora dos sacramentos e não proprietária deles, para ser a Igreja pobre e dos pobres na força do Espírito Santo. Esta deve ser uma característica fundamental da Igreja de Jesus Cristo, reconhecer Jesus nos pobres e sofredores: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje, sobretudo dos pobres e de todos aqueles que sofrem, são também as alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos discípulos de Cristo” (GS 1).
O Servo de Deus Dom Luciano Mendes de Almeida em conferência no Congresso Eucarístico de Florianópolis (2006), pouco antes de sua morte, dizia: “A Eucaristia é preparada por Jesus com as multiplicações do pão e dos peixes, transmitindo aos discípulos o dever de dar pão a quem tem fome. “Tive fome e me destes de comer” (Mt 25,40) e a palavra diante da multidão: “Dai-lhes vós mesmos de comer!”(Lc 9,13). É, pois, um dever básico da fraternidade que se estende a todos sem distinção”. E, mais adiante, Dom Luciano amplia o horizonte de atuação e aponta para o compromisso social de quem participa da Eucaristia: “a força da Eucaristia deve nos impulsionar para atitudes mais abrangentes e procurar transformar a sociedade por meio de leis e políticas públicas que modifiquem o sistema de acumulação doentia de bens aumentando a riqueza de poucos e segregando cada vez mais os pobres. A Eucaristia deve unir a comunidade a serviço dos mais pobres e habilitar os cristãos a contribuir para leis e medidas que garantam vida digna para todos: trabalho, salário justo e moradia”.
Assim, devemos nos interrogar sobre a qualidade de nossa vida sacramental e litúrgica, pessoal e comunitária, na perspectiva da fidelidade a Jesus Cristo. Não se pode contentar com uma espécie de intimismo religioso que não se comprometa com a transformação da sociedade à luz do Reino de Deus. Reduziríamos a Eucaristia e a Igreja, trairíamos a memória subversiva de Jesus. À luz da Conferência do Episcopado Latino-Americano e Caribenho de Aparecida (2007), das orientações da CNBB para a renovação das paróquias e das exortações e testemunho do Papa Francisco, devemos todos nos empenhar para que as nossas comunidades sejam missionárias e servidoras, no seguimento de Jesus, verdadeiramente corpo do Senhor ressuscitado no mundo a partir da Eucaristia celebrada e vivida.
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