Celebramos os cinquenta anos da Segunda Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, realizada na cidade de Medellín na Colômbia, de 24 de agosto a 06 de setembro de 1968. Foi a recepção criativa do Concílio Vaticano II na América Latina. Pode-se apontar como seu fruto o “espírito” de uma Igreja Latino-Americana que deixa de ser simplesmente reflexo do pensamento teológico da Europa, para se tornar também uma Igreja fonte, que reflete a partir de seu contexto, oferecendo contribuição própria para a Igreja em todo o mundo. Este espírito é fruto duradouro mais do que o próprio Documento de Medellín, constituído por 16 textos temáticos, abarcando amplo arco de dimensões da vida da Igreja e de sua relação com a realidade social da América Latina.
O Documento de Medellín tratou do desenvolvimento e da libertação dos povos a partir da situação dos pobres da América Latina e não da ótica do primeiro mundo, rico e desenvolvido. Denunciou “as estruturas de pecado”, causadoras das injustiças sociais. Apontou para a existência da miséria no continente como fato coletivo e que clama aos céus, constituindo-se, portanto, também como questão teológica, pecado social a exigir conversão pessoal e social. Trata-se de continente majoritariamente cristão católico em que cristãos oprimem e exploram cristãos, e ainda dependente, submetido e explorado pelos grandes centros de poder econômico e político, em relações internacionais assimétricas e injustas. Em questão estão a justiça e a paz. Recusa-se, como superação dessa situação, tanto o sistema liberal capitalista como o sistema marxista. Propõe a conversão de todos ao Reino de justiça, amor e paz inaugurado por Jesus Cristo.
Medellín incentivou as Comunidades Eclesiais de Base e os pequenos grupos de reflexão que tratam da realidade iluminada pela Palavra de Deus expressa nas Sagradas Escrituras, cultivando o ideal cristão de uma libertação integral. Apostou nas estruturas intermediárias entre a pessoa e o Estado, com pistas concretas de ação pastoral. Inspirou-se especialmente na Constituição Pastoral Gaudium et Spes do Concílio Vaticano II e na Encíclica Populorum Progressio do Beato Papa Paulo VI. Desencadeou processo que se tornou irreversível e teve continuidade nas Conferências seguintes de Puebla (1979), Santo Domingo (1992) e Aparecida (2007), com as suas devidas peculiaridades e ênfases. Trata-se de marco fundamental na caminhada da Igreja na América Latina e no Caribe.
Na introdução ao Documento os bispos latino-americanos falam com coragem profética de uma ação pastoral transformadora: “A hora atual não deixou de ser a hora da “palavra”, mas já se tornou, com dramática urgência, a hora da ação. Chegou o momento de inventar com imaginação criadora a ação que cabe realizar e que, principalmente, terá que ser levada a cabo com a audácia do Espírito e o equilíbrio de Deus. Esta Assembleia foi convidada “a tomar decisões e a estabelecer projetos, somente com a condição de que estivéssemos dispostos a executá-los como compromisso pessoal nosso, mesmo à custa de sacrifícios”.
A reflexão de Medellín visa a presença mais intensa e renovada da Igreja na transformação vivida pela América Latina e se dirige a três grandes setores:
1 – Setor da promoção do ser humano e dos povos do continente para os valores da justiça, da paz, da educação e do amor conjugal;
2 – Setor da evangelização: visa os povos deste continente e suas elites em profunda mutação de suas condições de vida e de seus valores, exigindo adequada evangelização e educação na fé, através da catequese e da liturgia;
3 – Setor relativo aos membros da Igreja: comunhão na ação pastoral através de estruturas visíveis e adaptadas às novas condições do continente.
Depois da Introdução, seguem-se os seguintes 16 temas e textos: 1 – Justiça; 2 – A Paz; 3 – Família e Demografia; 4 – Educação; 5 – Juventude; 6 – Pastoral das Massas; 7 – Pastoral das Elites; 8 – Catequese; 9 – Liturgia; 10 – Movimentos Leigos; 11 – Sacerdotes; 12 – Religiosos; 13 – Formação do Clero; 14 – Pobreza da Igreja; 15 – Colegialidade; 16 – Meios de Comunicação Social.
A missão pastoral no texto sobre a justiça é compreendida como serviço de inspiração e de educação das consciências dos fiéis, para ajudar-lhes a perceber as exigências e responsabilidades de sua fé, em sua vida pessoal e social. As exigências mais importantes apontadas são: mudanças sociais, reforma política, informação e conscientização.
A concepção cristã da paz é explicitada no texto sobre a paz em três pontos principais. A paz é, antes de mais nada, obra da justiça (Gaudium et Spes 73); supõe e exige a instauração de uma ordem justa (PT 167; PP 76). Não é a simples ausência de violências e derramamento de sangue. A paz é, em segundo lugar, uma tarefa permanente (GS 78). A paz não se acha, há que construí-la. O cristão é um artesão da paz (Mt 5,9). A paz é, finalmente, fruto do amor (GS 78). O amor é a alma da justiça. A solidariedade humana não pode ser realizada senão em Cristo (Jo 14,27). A paz com Deus é o fundamento último da paz interior e da paz social... onde a paz social não existe e há injustiças, rejeita-se o dom da paz do Senhor, rejeita-se o próprio Senhor (Mt 25, 31-46).
O Problema da violência na América Latina é claramente abordado. “A violência não é cristã, nem evangélica” (Papa Paulo VI). O cristão é pacífico e não se envergonha disso. Não é simplesmente pacifista, porque é capaz de lutar. A situação da América Latina é de violência institucionalizada e existe a “tentação da violência” (Populorum Progressio 30) diante das injustiças. Não se deve abusar da paciência de um povo. Lembra-se o perigo das revoluções nascidas do desespero. Considera-se que insurreição revolucionária pode ser legítima no caso de “tirania evidente e prolongada que ofendesse gravemente os direitos fundamentais da pessoa e danificasse perigosamente o bem do país” (PP 31). Também é certo que a violência ou “revolução armada” geralmente “acarreta novas injustiças, introduz novos desequilíbrios e provoca novas ruínas: não se pode combater um mal real ao preço de um mal maior” (PP 31). Opta-se pela ação pacífica: “Seremos capazes de compreender suas angústias e transformá-las não em ódio e violência, mas em energia forte e pacífica para obras construtivas” (Discurso de Paulo VI em Bogotá).
O Servo de Deus Dom Luciano Mendes de Almeida em balanço sobre o pensamento episcopal latino-americano nas conferências gerais do episcopado do continente, do Rio de Janeiro a Santo Domingo, assim se expressou de forma lapidar sobre o legado da Conferência de Medellín:
“O efeito do Concílio Vaticano II na América Latina, além de doutrinal, teve grande força de animação e de ardor na vida pessoal e das comunidades. De fato, a realização da Segunda Conferência em Medellín, assinalou o início de um crescente entusiasmo eclesial. O texto do documento não foi divulgado com muita rapidez, e também se pode dizer que não foi lido pela maior parte dos católicos, mas o Concílio Vaticano II, graças ao encontro episcopal de Medellín, penetrou de modo muito vivo nas nações da América Latina. Deve-se reconhecer que aquela assembleia fez com que a América Latina, mais ainda que outros lugares, se identificasse com as orientações do Concílio, buscando modos concretos de implementar os documentos. Como exemplo poderíamos recordar a necessidade de unir fé e vida em meio aos acontecimentos da década de 60; a compreensão da natureza da Igreja e de sua missão; a formação de comunidades para compartilhar e viver a Palavra de Deus; a relação entre a celebração da liturgia e os compromissos da vida cristã; o empenho de transformação de uma sociedade injusta à luz dos valores do Evangelho, entre outros.
A nota característica foi, sem dúvida alguma, a vitalidade que brotou, pouco a pouco, em todas as Igrejas da América Latina. Se o Concílio foi a semente, Medellín foi a chuva para fazê-la florescer em nossas terras”. (Dom Luciano Pedro Mendes de Almeida, in O Futuro da Reflexão Teológica na América Latina, CELAM, Bogotá, 1996).
Medellín faz a opção pelos pobres. O tema da pobreza da Igreja é importante. Devemos fazer uma distinção quando falamos de pobreza na Igreja, como já fez o Documento de Medellín. Há a pobreza carência que ofende a dignidade do ser humano, chegando até a níveis extremos de miséria. Deve ser combatida e superada. Há a pobreza espiritual que é um valor fundamental para todos cristãos e que deve ser buscada e cultivada. Devemos colocar toda a nossa confiança em Deus, buscando em primeiro lugar o Reino de Deus e a sua justiça e sermos desapegados, ordenando a vida e os bens de acordo com a vontade de Deus. Há a pobreza compromisso, pobreza assumida em solidariedade com os necessitados e como testemunho profético de seguimento de Jesus Cristo, pobreza material. Todos os cristãos devem buscar uma vida simples, austera, livre do consumismo e solidária com os pobres, capaz de partilha de bens.
Atualmente o Papa Francisco tem dito por diversas vezes que gostaria de uma “Igreja pobre para os pobres” (cf. Evangelii Gaudium 198). O desejo do Papa Francisco era bandeira já levantada pela Conferência de Medellín em 1968.
Cônego Lauro Sérgio Versiani Barbosa
Vigário Episcopal na Região Pastoral Mariana Leste