Todos os meses o Jornal Pastoral traz uma entrevista sobre algum assunto atual. Neste mês maio, o Pastoral conversou com o bispo auxiliar de Brasilia, Dom Leonardo Ulrich Steiner, sobre a Reforma da Previdência, PEC 06/2019. Leia a entrevista na íntegra:
A idade mínima de aposentadoria e o tempo mínimo de contribuição são algumas das mudanças propostas na Reforma da Previdência, PEC 06/2019. Quais são os riscos dessas mudanças?
Dom Leonardo: A CNBB já manifestou sua preocupação diante da proposta de Reforma da Previdência enviada pelo Governo ao Parlamento. Os bispos reafirmaram que o sistema da Previdência Social possui uma intrínseca matriz ética. Não se pode esquecer que esse sistema foi criado para garantir a proteção social de pessoas que, por vários motivos, ficam expostas à vulnerabilidade social particularmente as mais pobres. A idade é um desses motivos. Não se pode aceitar que uma conta que serve aos interesses atuais do governo jogue a aposentadoria para períodos muito remotos na vida das pessoas. E nenhuma solução para equilibrar um possível déficit pode prescindir de valores ético-sociais e solidários.Os mecanismos sobre idade e tempo de contribuição, portanto, devem ser considerados em um amplo diálogo nacional pois pode colocar em risco a segurança de muitas famílias no Brasil. Trata-se de olhar para essas questões ultrapassando os frios valores calculados e ver a situação real das pessoas depois de algumas décadas de trabalho. Há, por exemplo, o caso dos trabalhadores rurais que as novas regras simplesmente exigem um período amplo de contribuição que na observação da realidade concreta dos nossos trabalhadores poderá resultar numa impossibilidade de modo a deixar esses trabalhadores sem cobertura de seguridade social.
Quem são os mais sacrificados com as mudanças contidas na Reforma da Previdência?
Dom Leonardo: É possível responder essa questão utilizando o raciocínio inverso. Quem não será sacrificado? A resposta é fácil: somente não serão prejudicados aqueles que detêm privilégios econômicos e que podem assegurar sua saúde e amparo na idade avançada, contando apenas com sua própria situação financeira consolidada e estável. E isso significa dizer que quanto mais pobre for a pessoa, mais prejudicada ela será com as mudanças propostas na Reforma da Previdência elaborada pelo governo, especialmente no que tange à chamada capitalização. É justamente por isso que se pode dizer, sem exagero, que os mais abastados economicamente não têm preocupação com a Reforma e até a apoia uma vez que não estão vulneráveis aos efeitos das mudanças.As pessoas que vivem na pobreza precisam de um amparo maior do Estado e a Seguridade Social está garantida na Constituição Federal. A Previdência está incluída na Seguridade Social e os poderes públicos devem ter ações no sentido de fazer valer esse direito. A CNBB já deixou isso bem claro: “que as mudanças contidas na PEC 06/2019 sacrificam os mais pobres, penalizam as mulheres e os trabalhadores rurais, punem as pessoas com deficiência e geram desânimo quanto à seguridade social, sobretudo, nos desempregados e nas gerações mais jovens”.
Em Nota publicada, a CNBB reafirma que “o sistema de Previdência Social possui uma intrínseca matriz ética. Ele é criado para a proteção social das pessoas que, por vários motivos, ficam expostas à vulnerabilidade social, particularmente os mais pobres”. Com a Reforma essa proteção social está em jogo?
Dom Leonardo: É bom lembrar o que significa uma matriz ética para um sistema. Uma expressão muito simples para se entender é que a ética nasce quando um ser humano consegue se colocar no lugar do outro e pode avaliar os impactos que uma lei, um costume, uma ideia ou uma ação tem na vida dessa pessoa. Desse modo, por uma questão de matriz ética, o sistema previdenciário deve ser avaliado sob a perspectiva de sua incidência na vida dos pobres. Pode-se dizer, por exemplo, que uma nova regra tenha grande poder de economia para o poder público e servir aos interesses de suas correções em gastos públicos e, ao mesmo tempo, serem altamente prejudiciais para a vida das pessoas mais pobres do Brasil.Aquela metáfora já usada por muitos críticos da atual proposta de reforma tem um valor especial para ajudar na compreensão do que realmente está em jogo. Se um animal tem parasitas não se pode matá-lo para eliminar os parasitas. É preciso garantir que a saúde o animal seja garantido, ainda que se tenha que, exatamente para deixa-lo saudável, eliminar os parasitas que se acomodaram em sua pele. Nenhuma reforma previdenciária pode atentar contra a vida dos pobres, porque assim sendo, ainda que ela responda aos interesses de equilíbrio em contas públicas, do ponto de vista ético, torna-se imoral. Por isso na última declaração oficial da CNBB os bispos afirmam que “a conta da transição do atual regime para o regime de capitalização, proposto pela reforma, não pode ser paga pelos pobres”.
A proposta de Reforma da Previdência derruba as noções de direitos e assistência social asseguradas pela Constituição de 1988?
Dom Leonardo: A CNBB alertou que tentar transferir alguns pontos contidos na Constituição como regras previdenciárias a respeito de idades de concessão, carências, formas de cálculo de valores e reajustes para serem objeto de leis complementares é uma iniciativa que agride a dignidade humana. Os especialistas estão certos de que esse tipo de manobra fragiliza os direitos sociais. Desconstitucionalizar um tema tão delicado e de grande incidência na vida dos brasileiros como a Previdência Social é um risco enorme para a garantia dos direitos básicos da população.A assistência social, vinculada à Seguridade Social, também pode ter prejuízos se passar a ser objeto de leis complementares. Tira-se desse aspecto fundamental da vida das famílias o teor de seriedade que apenas a Constituição pode dar diante de eventuais mudanças. Todos sabemos do rigor necessário para aprovação de emendas à Constituição que tem diferenças significativas a respeito de número de procedimentos e a tramitação normal de leis complementares. Deduz-se, claro, que se passar essa proposta temos diante de nós pessoas eleitas no Congresso Nacional que não visam o bem dos eleitores. Uma das justificativas da Reforma da Previdência é conter o déficit bilionário que deixaria a Previdência inviável no futuro. Mas onde estão os números? onde a auditoria da dívida pública? onde os gastos públicos, onde a precarização do trabalho? Essas medidas poderiam resolver esse problema sem que o trabalhador seja o prejudicado.
Qual a posição da CNBB em relação à Reforma da Previdência?
Dom Leonardo: Não somos contra discutir a Previdência para que ela possa atender a todas as pessoas. No entanto, por motivos éticos e morais não podemos assistir passivamente a proposta apresentada. No mais creio já ter respondido.
Qual o papel das comunidades eclesiais de base e dos movimentos populares na discussão da Reforma da Previdência?
Dom Leonardo: As Comunidades, os movimentos são essenciais na vida da sociedade. No caso da Previdência é decisivo que as Comunidades, os movimentos participem das discussões e apresentem propostas. Não podemos deixar que um grupo prepare um projeto de mudanças na previdência distante das necessidades das pessoas. Ao analisarem os números vejam rostos, vidas. Não trabalhem para o mercado, mas para as pessoas que são o Estado brasileiro. Participar é a oportunidade de termos mais fraternidade, justiça, inserção social.
Como senhor vê a propaganda da mídia e, também dos apoiadores da Reforma da Previdência em relação a sua importância e pressa em ser aprovada?
Dom Leonardo: A propaganda esconde a verdade. São afirmações que procuram gerar medo, apreensão. Não esclarece a questão da Previdência. Se todos soubessem a realidade concreta entenderiam. Mas apenas se afirma uma catástrofe... Para piorar, segundo meios de comunicação, criou-se um sigilo em torno dos dados da Previdência. Isso é no mínimo má fé. A sociedade não pode ter acesso aos dados porquê? A propaganda do governo não contribui para a verdade e a justiça.