Eucaristia: Mistério da Fé¹

19/06/2019 às 14h18

Pe. Lauro Sérgio Versiani Barbosa²

 

Há cerca de 20 séculos nós somos a Comunidade da Ceia do Senhor! Há quase dois mil anos a Igreja se reúne em torno da mesa do altar para rezar, refletir e viver o sentido das palavras do Senhor: “Isto é o meu corpo...isto é o meu sangue...” (Mt 26,26-28; Mc 14,22-25; Lc 22,19-20; 1 Cor 11, 23-25; Jo 6,51-58). A Igreja vive da Eucaristia, Ecclesia de Eucharistia, nos recordava o Papa João Paulo II na sua Carta Encíclica por ocasião da Quinta-Feira Santa de 2003. Trata-se do “próprio núcleo do mistério da Igreja” (EE 1). A Igreja celebra a Eucaristia, mas a Eucaristia faz a Igreja. Estamos diante do centro espiritual das comunidades, do centro da Igreja universal e, porque não dizê-lo, diante do centro de toda a humanidade e da história! Trata-se do Deus-Conosco, o Emanuel. É a realização por excelência da palavra do Senhor ao final do Evangelho de Mateus: “E eis que eu estou convosco todos os dias, até a consumação dos séculos!” (Mt 28,20).

A Eucaristia é antes de tudo mistério de fé. Devemos nos deixar guiar pelas palavras do Senhor na Última Ceia, atentos ao “que” se passa sem nos preocuparmos demasiadamente com o “como”. Devemos nos deixar maravilhar pelo gesto de amor que nos ultrapassa e nos convida ao louvor, à adoração, à comunhão, ao compromisso de vida, à santidade!

As palavras de Jesus na Última Ceia inserem-se na tradição do estar à mesa com os seus cultivada pelo Mestre e dentro da tradição maior de Israel. Para o oriental a refeição comum é de grande importância: é sinal de paz, confiança, fraternidade, perdão. No Antigo Testamento lemos que o rei de Judá, Joaquim, vivendo no exílio, foi recebido à mesa pelo rei da Babilônia como sinal de graça, reconciliação e amizade: 2 Rs 25,27-29; Jr 52,31-33. Em Israel se rezava antes e depois da refeição. Com a oração, a comunhão de mesa se tornava como que “um espaço sagrado”, com a participação real dos comensais na bênção pronunciada, integrando a todos numa comunhão de vida.

No Novo Testamento lemos nos evangelhos que Jesus freqüentemente estava à mesa com os pecadores e publicanos, sendo motivo de escândalo para muitos. Com tal atitude Jesus proclamava o início do tempo da salvação, fazendo um apelo à conversão e à acolhida do Reino de Deus. Suas atitudes significavam perdão e salvação, mostrando a vontade de Deus de acolher os pecadores em seu Reino: Mc 2,16-17; Lc 5,27-32; Lc 7,36-50; Lc 15,1-32; Lc 19,1-10. Ora, nós sabemos que Jesus é o Messias (Mc 8,27-29; Mt 16,13-20; Lc 9,18-21), logo a refeição com ele tem um significado único: trata-se de prefiguração e antecipação da refeição escatológica, do banquete messiânico, tempo de redenção e perdão, tempo de reconciliação e paz. A última ceia está inserida nesta série de refeições de Jesus, mas se distingue de todas elas. Agora se trata do pleno cumprimento e atualização do tempo da salvação, antes apenas vislumbrado, e de forma inaudita e insuspeitada, que a Igreja confessa com assombro reverente em sua liturgia: Mysterium Fidei!

Desde os seus primórdios a Igreja se reúne diariamente para a refeição em comum, conforme lemos nos Atos dos Apóstolos (At 2,46; At 6,1), continuando o que Jesus inaugurou com o seu gesto e as suas palavras: “Fazei isto em memória de mim” (Lc 22,19; 1 Cor 11,25). Assim, a Igreja é a comunidade messiânica que celebra a memória do Senhor, proclamando a obra da salvação e suplicando ao Senhor que a leve a bom termo: “Anunciamos, Senhor, a vossa morte e proclamamos a vossa ressurreição. Vinde, Senhor Jesus!” (Missal Romano).

As palavras pronunciadas por Jesus na Última Ceia foram recolhidas em cinco diferentes textos do Novo Testamento: 1 Cor 11,23-25; Mc 14,22-24; Mt 26,26-28; Lc 22,19-20; Jo 6,51. Paulo nos oferece o mais antigo texto escrito (por volta do ano 54): registra o que recebeu como tradição que remonta ao Senhor. Na antiga fórmula pré-paulina utilizada, as palavras da ceia aparecem como continuação da oração que se recitava antes e depois da refeição. O texto de Paulo nos remete à comunidade de Antioquia dos anos 40.

 O texto de Marcos, embora seja o segundo texto escrito mais antigo, provavelmente datado do começo dos anos 70, possui semitismos que remetem a uma tradição ainda mais antiga que a de Paulo, reportando-nos aos anos 30. A sua narrativa é parte da história da Paixão do Senhor e fala do “sangue da Aliança” derramado “em favor de muitos” (Mc 22,24). O texto de Mateus possui semelhanças e diferenças em relação ao de Marcos. A passagem da Última Ceia em Mateus tem o aspecto de fórmula litúrgica, ganhando autonomia em relação à narrativa da Paixão do Senhor. Mateus fala do “sangue da Aliança”, “derramado por muitos” e acrescenta “para a remissão dos pecados” (Mt 26,28). Ambos, Mateus e Marcos, foram influenciados pela liturgia de Jerusalém.

Lucas apresenta proximidade em relação ao texto de Paulo, embora tenha as suas características próprias. As semelhanças entre Lucas e Paulo são devidas à redação mais helenizada da fórmula da Ceia utilizada pela liturgia de Antioquia, que influenciou os dois. Porém também Lucas nos remete a um estágio da tradição anterior ao texto de Paulo. Enquanto Paulo utiliza o título cristológico solene “O Senhor Jesus”, Lucas tem um estilo narrativo próprio que principia com o “e”, além de omitir o verbo “é” quando trata do cálice, o que revela o costume semítico. Tanto Lucas como Paulo se referem ao corpo “que é dado por vós” (Lc 22,19; 1 Cor 11,24) e ao “cálice da Nova Aliança” (Lc 22,20; 1 Cor 11,25), sendo que Lucas fala do sangue derramado “em favor de vós” (Lc 22,20).

Com João nós estamos diante de redação mais independente das palavras da instituição da Eucaristia. O texto fundamental é Jo 6,51c: “O pão que eu darei é a minha carne para a vida do mundo”. No lugar de “isto”, João diz “o pão que eu darei”; no lugar de “por vós”, escreve “para a vida do mundo”; ao invés de “meu corpo”, encontramos “minha carne”. Santo Inácio de Antioquia e São Justino também dão testemunho dessa tradição que se espalhou pelos círculos da Síria e da Ásia Menor. Observe-se, a propósito, que o termo hebraico-aramaico “basar/bisra” podia ser traduzido tanto por “corpo” como por “carne”.

Sintetizando, podemos dizer que as pequenas diferenças nos textos bíblicos que falam da instituição da Eucaristia são um eloqüente testemunho sobre a celebração da Ceia do Senhor nas comunidades na Igreja primitiva. Há uma concordância no essencial e os textos citados apontam para fundamento seguro e inaugural da Tradição eclesial: Jesus comparou e identificou no sentido sacramental o pão ao seu corpo; Jesus comparou e identificou no sentido sacramental o vinho ao seu sangue, dizendo que se tratava de Nova Aliança; os cinco textos trazem a preposição “por” indicativa do para que é oferecido o corpo e o sangue de Jesus.

Na Ceia Pascal hebraica o pai de família costumava explicar o que se celebrava: o sentido do cordeiro pascal, do pão ázimo, das ervas amargas. Assim, Jesus, que modifica livremente a Ceia hebraica, acrescentou às orações do começo e do fim da refeição as palavras explicativas de seus gestos e do sentido da entrega de sua vida, o que a Igreja recolheu como seu tesouro e das quais vive. Jesus deu o sentido definitivo à páscoa judaica, antecipando na Última Ceia a sua passagem para o Pai através de sua morte e ressurreição, penhor de nossa Páscoa definitiva. Jesus se identifica com o cordeiro pascal que traz a Nova Aliança, como bem diz Paulo: “Cristo, nossa Páscoa, foi imolado” (1 Cor 5,7; ver também: Jo 1,29.36; 1 Pd 1,19; Ap 5; Ap 6; Ap 12,11; Ap 19,7.9; Ap 22,1.3). Jesus usou expressões cultuais próprias da linguagem sacrifical, conforme Êxodo 24,8 (“Então Moisés tomou do sangue, aspergiu com ele o povo, e disse: eis o sangue da Aliança”) e ainda Isaías 53, identificando-se com o Servo sofredor de Javé, que oferece a própria vida em favor de muitos. Em Isaías 53 “muitos” significa uma série interminável, totalidade. Os cinco textos citados que falam da instituição da Eucaristia no Novo Testamento concordam que Jesus entendeu a sua morte “em benefício de”. Em Marcos e Mateus nós lemos que Jesus oferece a sua vida “por muitos”; em Paulo e Lucas “por vós”; em João “para a vida do mundo”. Jesus dá aos seus discípulos a garantia de seu amor e da participação no seu destino glorioso a partir da Nova Aliança inaugurada no seu sangue.

A Eucaristia é o sacramento desta autodoação salvífica de Jesus Cristo. Trata-se do seu “dom por excelência” (EE 11). Memorial da paixão, morte e ressurreição de Jesus, que deu a vida por todos nós e inaugurou definitivamente o reinado de Deus na história, na força do Espírito para glória do Pai. A Eucaristia não só evoca o acontecimento central da nossa salvação, mas o torna presente e atuante, penhor da glória futura: “Quem come a minha carne e bebe o meu sangue tem a vida eterna, e eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6,54).

Assim se expressa o Concílio Vaticano II a propósito do mistério da Eucaristia: “Na Última Ceia, na noite em que foi entregue, nosso Salvador instituiu o Sacrifício Eucarístico de Seu Corpo e Sangue. Por ele perpetua pelos séculos, até que volte, o Sacrifício da Cruz, confiando deste modo à Igreja, sua dileta Esposa, o memorial de sua morte e ressurreição: sacramento de piedade, sinal de unidade, vínculo de caridade, banquete pascal, em que Cristo nos é comunicado em alimento, o espírito é repleto de graça e nos é dado o penhor da futura glória” (SC 47).

O Sacramento da Eucaristia exige o máximo da reflexão teológica, que terminará por confessar devotamente e maravilhada: Mysterium Fidei; como fazemos sempre em nossas celebrações eucarísticas após a consagração do pão e do vinho. Assim afirma São João Crisóstomo: “Inclinemo-nos sempre diante de Deus sem o contradizermos, embora o que Ele diz possa parecer contrário à nossa razão e à nossa inteligência; sobre a nossa razão e a nossa inteligência, prevaleça a sua palavra. Assim nos comportemos também diante do Mistério (Eucarístico), não considerando só o que nos pode vir dos nossos sentidos, mas conservando-nos fiéis às suas palavras. Uma palavra sua não pode enganar” (In Matth. Hom. 8,4; PG 58, 473). E ainda Santo Ambrósio falando sobre a presença de Cristo nas espécies consagradas: “Persuadamo-nos que já não temos o que a natureza formou, mas o que a bênção consagrou; e que a força da bênção é maior que a força da natureza, porque a bênção até a natureza muda (...) A palavra de Cristo, que pode fazer do nada aquilo que não existia, não poderá mudar as coisas que existem naquilo que não eram? Criar coisas não é menos que mudá-las” (De myster., 9,50-52; PL 16, 422-424).

O que Jesus nos deixou com o Sacramento da Eucaristia supera tudo o que poderíamos imaginar. Temos aqui a síntese da Revelação que nos foi confiada com todo o seu amor: “...tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim” (Jo 13,1); “Desejei ardentemente comer esta páscoa convosco antes de sofrer...” (Lc 22,15). É como diz Santa Teresinha de Lisieux: “Ó Jesus, deixa-me dizer, no excesso da minha gratidão, deixa-me dizer que o teu amor chega até à loucura...” ( Scritto autobiografico B n.263, em Gli scritti, Roma 1970, p.244). Trata-se do Sacramento do Amor de Deus por nós, que assumiu a forma que só o Senhor apaixonado poderia estabelecer. Jesus celebrou a Última Ceia e a instituiu como seu Testamento, compêndio de seu ser e obra salvífica, dom visível para o nosso alimento, o seu sacramento por excelência. Jesus através do seu gesto profético (ôt) da Última Ceia oferece a sua vida ao Pai pela humanidade, deixando-nos o seu Sacramento na forma de banquete sagrado. Foi o gesto simbólico mais importante realizado por Jesus, síntese de todos os outros, antecipador do futuro e realização inicial do desígnio divino reconciliador, cujo primeiro cumprimento aconteceu no mistério pascal e prefigura o cumprimento definitivo no Reino plenamente realizado. Em cada Eucaristia celebrada, a Igreja prolonga, atualizando, o gesto profético de Jesus (ôt) de autodoação, cumprindo-o na história, entre o primeiro advento do Cristo e o seu advento final.

Portanto, a Eucaristia torna sacramentalmente presente e atuante o sacrifício reconciliador de Cristo no Calvário, oferecido ao Pai por toda a humanidade. A este sacrifício se associa a Igreja que celebra a Eucaristia, oferecendo-se com e alimentando-se do Corpo de Cristo, fundamento da unidade-diversidade da própria Igreja (LG 11). No banquete eucarístico, “a eficácia salvífica do sacrifício realiza-se plenamente na comunhão, ao recebermos o corpo e sangue do Senhor” (EE 16). O Senhor nos alimenta, nos concede o seu Espírito e faz de nós um só corpo, edificando a sua Igreja (1 Cor 10,17). Esta Igreja é chamada a dar a vida pelos irmãos no seguimento de Jesus. A comunidade que participa do banquete eucarístico deve se tornar o corpo vivo do Senhor Ressuscitado. Já dizia o teólogo Joseph Ratzinger em 1963: “a meta suprema da Eucaristia não é a transformação dos dons...é a transformação dos homens viventes no corpo de Cristo”. A Eucaristia como refeição fraterna e festiva, memorial da Páscoa do Senhor, compromete a vida na solidariedade com os que sofrem: os pobres, os pecadores, os enfermos, os excluídos e marginalizados de todo o tipo. A Eucaristia é, pois, promessa de uma humanidade nova, possui um significado escatológico. Quem comunga do Corpo e Sangue do Senhor tem uma responsabilidade histórica de transformação deste mundo, até com o sacrifício da própria vida, a exemplo e fortalecido pelo sacrifício de Jesus, para que o mundo seja de Deus na fraternidade do Reino. A Eucaristia, além de mistério de fé e caridade, nos infunde esperança, aponta para o futuro e nos coloca em comunhão com a Igreja celeste, sendo como que “um pedaço do céu na terra” (EE 19).

O Magistério da Igreja tem chamado particularmente a nossa atenção nos últimos tempos para o mistério da presença real de Cristo na Eucaristia. O Papa Paulo VI na sua Encíclica Mysterium Fidei (1965) recorda que são vários os modos de presença de Cristo na sua Igreja: na oração da Igreja; quando a Igreja pratica as obras de misericórdia; na Igreja peregrina que caminha à luz da fé e movida pela caridade sob a ação do Espírito Santo; está presente quando a Igreja prega a Palavra de Deus; está presente através dos pastores que dirigem e governam o povo de Deus; e “de modo ainda mais sublime, está Cristo presente à sua Igreja enquanto esta, em seu nome, celebra o Sacrifício da Missa e administra os Sacramentos” (MF 38). E prossegue Paulo VI mais adiante, destacando a presença real de Cristo na Eucaristia: “Estas várias maneiras de presença enchem o espírito de assombro e levam-nos a contemplar o Mistério da Igreja. Outra é, contudo, e verdadeiramente sublime a presença de Cristo na sua Igreja pelo Sacramento da Eucaristia. Por causa dela, é este Sacramento, comparado com os outros, “mais suave para a devoção, mais belo para a inteligência, mais santo pelo que encerra”; contém, de fato, o próprio Cristo e é “como que a perfeição da vida espiritual e o fim de todos os Sacramentos” (Santo Tomás, Summa Theol. III,q.73,a.3c.). Esta presença chama-se “real”, não por exclusão como se as outras não fossem “reais”, mas por excelência porque “substancial”, quer dizer, por ela está presente, de fato, Cristo completo, Deus e homem” (MF 40-41). Já o Vaticano II dissera, falando sobre a presença de Cristo na liturgia, que Cristo está presente “sobretudo sob as espécies eucarísticas” (SC 7). E o Papa João Paulo II afirma na Encíclica Ecclesia de Eucharistia: “Contemplar Cristo implica saber reconhecê-Lo onde quer que Ele Se manifeste, com as suas diversas presenças mas sobretudo no sacramento vivo de seu corpo e de seu sangue. A Igreja vive de Jesus eucarístico, por Ele é nutrida, por Ele é iluminada” (EE 6).

A doutrina católica ensina que Jesus está presente na Eucaristia “verdadeiramente, realmente e substancialmente” (DH 1651). A presença real de Cristo na Eucaristia é matéria de fé para a Igreja, pois deriva da Palavra de Deus atestada nas Sagradas Escrituras e na Tradição. Jesus disse “Isto é o meu corpo...isto é o meu sangue” e em João: “Minha carne é verdadeira comida, e meu sangue é verdadeira bebida. Quem come a minha carne e bebe o meu sangue permanece em mim, e eu nele” (Jo 6,55-56). Já em João vemos que Jesus não recuou diante da dificuldade de aceitação que as suas duras palavras provocaram. O discípulo de Jesus deve não só estar diante dele, mas permanecer nele, sobretudo através de sua presença na Eucaristia. A Tradição da Igreja testemunhou esta presença ao longo dos séculos. O Concílio de Trento expôs de forma ampla a doutrina católica sobre a Eucaristia, que é retomada pelo Catecismo da Igreja Católica. Dizer que Cristo está verdadeiramente contido nas espécies eucarísticas significa afastar a idéia de que o Sacramento seja apenas um símbolo, no sentido de mero sinal. A presença de Cristo é real, isto é, ontológica (no nível do ser) e objetiva (não depende da subjetividade das pessoas: pensamentos, sentimentos ou mesmo fé, embora esta última seja importante para a participação frutuosa no Sacramento, a sua ausência não torna irreal a presença de Cristo no Sacramento). Por fim, a presença de Cristo na Eucaristia é substancial. O termo não é usado no sentido da filosofia de Aristóteles, mas no sentido comum, derivado da raiz latina sub-stare, significando “o que está sob as aparências” que podem mudar, ou seja, a realidade fundamental, a coisa em si. Assim fica claro que a presença de Cristo na Eucaristia não é apenas por sua ação, como nos outros sacramentos, mas é substancial e, por isto, a Eucaristia pode ser adorada. Com a consagração, a inteira substância do pão e do vinho se transforma na substância do corpo e do sangue de Cristo, embora as aparências de pão e vinho permaneçam. O Cristo inteiro está presente em cada uma das espécies eucarísticas, seja sob a aparência do pão, seja sob a aparência do vinho. Para expressar esta conversão da inteira substância das espécies eucarísticas do pão e do vinho na inteira substância do corpo e sangue do Senhor, mantendo as mesmas aparências, a Igreja criou o termo técnico “transubstanciação”. Assim, a Igreja ensina que a presença de Cristo é sacramental, não física no sentido mensurável, pois as propriedades físicas e químicas continuam a ser as do pão e do vinho.

A presença de Cristo na Eucaristia só pode ser acolhida na fé de quem aceita a Palavra de Deus. No Sacramento da Eucaristia, como diz o Concílio Vaticano II citando Santo Tomás de Aquino, “está contido todo o bem espiritual da Igreja, isto é, o próprio Cristo, a nossa Páscoa e o pão vivo que dá aos homens a vida mediante a sua carne vivificada e vivificadora pelo Espírito Santo” (PO 5). É desta presença que a Igreja vive: “a Eucaristia aparece como fonte e coroa de toda a evangelização” (PO 5). É esta presença real e pessoal de Cristo no Sacramento da Eucaristia que o Magistério da Igreja quer realçar e reavivar hoje entre os seus filhos, fomentando a celebração digna e frutuosa da Eucaristia e o culto eucarístico mesmo fora da missa (MF 66-68; EE 10; 25; MND 17-18). Celebração eucarística e adoração ao Santíssimo Sacramento não se opõem, mas se complementam e impulsionam a verdadeira vida cristã para a santidade a partir da experiência de oração e comunhão com o Senhor da história presente no adorável Sacramento, fonte de caridade que renova o mundo.

 ¹ Conferência de abertura do 1º Congresso Eucarístico da Arquidiocese de Mariana proferida no dia 26 de abril de 2006 na Basílica do Sagrado Coração de Jesus em Conselheiro Lafaiete, por ocasião da celebração dos 100 anos da Igreja de Mariana como Arquidiocese.

²  Professor do Instituto de Teologia do Seminário São José da Arquidiocese de Mariana.

 

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