Indignação ou acomodação

01/02/2017 às 14h35

Há algum tempo escrevi um artigo sobre a “teologia da indignação”. Isso mesmo. Penso que a nossa fé não pode abdicar também dessa virtude. Não somos seguidores de quem se curva ou se cala diante do mal e da injustiça, mas de Alguém que nunca se omitiu e nunca teve medo de se levantar contra a opressão, a injustiça, a exploração. Só que, ao que parece, estamos cada vez mais passivos, omissos. E, quando nos indignamos, muitas vezes erramos o alvo.

O Deus da Bíblia, embora misericordioso, não deixa também de extravasar a sua ira. Quando o povo abandonou a Aliança, “Javé os arrancou do próprio solo com ira, furor e grande indignação” (Dt 29,27). Contra o Faraó que oprimia o povo, sua ira chega a assustar, sobretudo com as famosas “pragas do Egito” (cf. Ex 7-11). Aos que fazem sofrer os pequenos, ameaça: “Se alguém afligir a viúva ou órfão, minha ira se acenderá” (Ex 22,22-23).

Jesus teve seus momentos de indignação. No Templo, contra aqueles que exploravam os pobres em nome da religião, “fez um chicote para bater, derrubou as mesas e esparramou pelo chão o dinheiro dos cambistas” (Jo 2,14-16). Na sinagoga, quando querem impedi-lo de curar um doente, por ser dia de sábado, conhecemos sua reação: “repassando sobre eles um olhar de indignação, e entristecido pela dureza do coração deles”, chama o homem para o meio (Mc 3,1-6).

Santo Agostinho dizia que “a esperança tem duas filhas lindas: a indignação que nos ensina a não aceitar as coisas como estão, e a coragem que nos motiva a mudá-las”. Parece que nossa esperança está um tanto estéril. Diante de tanta injustiça, desigualdade, omissão, o que temos feito de concreto?

Pobres e jovens são presos e mofam nas cadeias, muitas vezes sem julgamento. E quais medidas socioeducativas lhe são oferecidas? Que opções oferece o sistema prisional para facilitar sua reinserção na família e na comunidade? Que programas educativos são disponibilizados aos familiares para que saibam como lidar com a dependência química, causadora da maior parte das prisões? E como reagimos? Por ocasião do massacre no complexo penitenciário de Manaus, no dia primeiro de janeiro, com 56 mortes, o então secretário nacional da Juventude afirmou que “tinha era que matar mais. Tinha que fazer uma chacina por semana”. A reação de muitos foi de calar ou consentir.

Pais de família são presos por pescar fora do tempo, por cortar madeira em seu terreno, por matar algum animal que lhes prejudica a plantação... E o que acontece com aqueles que depredam rios e matas inteiros, queimam índios, sonegam impostos altíssimos, exploram trabalhadores?... Muitos deles até conseguem se tornar legisladores, juízes, administradores públicos. E aí, como diz Leonardo Boff, “são fortes quando se trata dos fracos. Diante dos poderosos são covardes.” E a nossa reação? Diria o Zé Geraldo: “Isso tudo acontecendo e eu aqui na praça dando milho aos pombos”. A cada dia, direitos conquistados com suor e sangue são rasgados e negados, mas as panelas, antes ruidosas nas janelas, agora jazem silenciosas nos armários. Mas... “é por uma justa causa, né...”

E isso acontece em todos os lugares, em todos os níveis. Também em nossos municípios e comunidades. Nas prefeituras, câmaras legislativas, fóruns e delegacias. Até mesmo nas Igrejas. Aliás, o vírus da falta de ética contamina também a própria religião. Há muita exploração em nome da fé, em nome de Deus. Muito dinheiro em troca de milagre, de água ungida, de terra santa, de medalha milagrosa, de bênção, de consagração. A graça, que significa algo gratuito, dom de amor, já não é tão de graça assim. Mas aceitamos como normal. E onde fica a indignação? Quando existe, é tímida, isolada, pouco articulada, ou se dirige às pessoas erradas. Como canta o Skank: “A nossa indignação é uma mosca sem asas. Não ultrapassa as janelas de nossas casas”.

Por isso, a cada dia fica mais difícil encontrar gente para a dimensão sociopolítica da fé, para as pastorais sociais, para a promoção humana, para os conselhos de direitos, e vão crescendo o devocionismo, a religião individual, a teologia da prosperidade... É bem mais cômodo! Só não sei se é cristão.

Pe. José Antonio de Oliveira


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