“Já que se há de escrever, que pelo menos não se esmaguem com palavras as entrelinhas”. Sabedoria poética da grande Clarice Lispector. A verdade está muito mais no ‘não-dito’; dizem os psicanalistas. E é a partir dessa constatação que quero falar a respeito desse tema tão complexo e tão em voga: a Ação Penal 470 ou, como ficou conhecida, o “mensalão”. O que está por trás de todo esse alarde? Será que estamos entendendo bem, ou somos uma inocente plateia de um grande circo armado no picadeiro do Brasil?
O julgamento no STF dos envolvidos no “mensalão” tem muito mais coisas do que podemos imaginar. Milhões de brasileiros estão embarcando inocentemente numa canoa preparada por uma elite conservadora do País, que não aceita o povo no ‘Planalto’ por entender que o lugar deste é na planície. Não é à toa que, quando Lula foi eleito Presidente, alguém disse: “finalmente chegamos ao poder!”, ao que um experiente militante retrucou: “chegamos ao poder não, chegamos ao governo, pois o poder ainda continuará nas mãos de quem sempre o teve (os detentores do capital)”.
Nunca fui filiado ao PT e sei que há muitos corruptos também nesse partido. Torço para que todos, onde quer que se encontrem, sejam julgados e, comprovada sua culpa, punidos exemplarmente. Porém, defendo que a justiça seja para todos, sem distinção. E sei que isso não está acontecendo.
Sob os holofotes da mídia, os ministros do STF bradam solenes: trata-se de um “assalto criminoso à administração pública”, “uma quadrilha de ladrões de beira de estrada”, um “bando criminoso”. Para muitos da imprensa, “Lula é o chefe da quadrilha”. O julgamento foi transformado num espetáculo midiático.
Neste contexto, ao longo destes quase três meses de julgamento, alguns questionamentos nos vêm inevitavelmente. Primeiro: Por que a rapidez para que o julgamento saísse às vésperas das eleições? Segundo: por que o “mensalão” do PSDB, em Minas, que é anterior ao do PT, ainda não foi julgado? Terceiro: por que, em outros casos tão graves quanto a AP 470, o STF não agiu da mesma forma?
Vários pensadores têm refletido sobre a ideologia que perpassa o processo do “mensalão”. Leonardo Boff, por exemplo, chama a atenção para a linguagem usada pelos ministros. Para ele fica claro que o grande objetivo é desmoralizar um governo popular, eleito democraticamente, e que melhorou consideravelmente a qualidade de vida do povo brasileiro.
O Professor Fábio Konder Comparato, por sua vez, questiona por que os grandes empresários não sentam no banco dos réus. Em artigo sobre o “mensalão”, escrito para o Brasil de Fato, diz: “E os grandes empresários? Bem, estes parecem merecer especial desvelo por parte dos magistrados. Ainda recentemente, a condenação em primeira instância por vários crimes econômicos de um desses privilegiados, provocou o imediato afastamento do Chefe da Polícia Federal, e a concessão de habeas-corpus diretamente pelo presidente do Supremo Tribunal, saltando por cima de todas as instâncias intermediárias”.
Recorda, ainda, que alguns Ministros do Supremo Tribunal Federal declararam que os crimes denunciados no “mensalão” são “gravíssimos”. Mas chamados a votar a revisão da lei da anistia, “não consideraram como dotados da mesma gravidade os crimes de terrorismo praticados pelos agentes da repressão: tortura de presos políticos, muitas vezes até à morte, execução sumária de opositores ao regime, com o esquartejamento e a ocultação dos cadáveres”.
Para Ramatis Jacino, professor da USP, a questão passa pelo fato de Lula ter sido presidente e ter realizado muitas mudanças no país. Ele lembra que as elites não irão jamais “digerir” o fenômeno Lula. É necessário “desconstruir um governo e um ex-presidente que os incomoda profundamente”. Um governo que conseguiu “elaborar o maior programa de transferência de renda do mundo, construir mais de um milhão de moradias populares, criar 15 milhões de empregos, quase triplicar o salário mínimo e incluir no mercado de consumo 40 milhões de pessoas”.
Ao elevar o salário mínimo a mais de 300 dólares e implementar políticas de inclusão social, Lula possibilitou a muita gente ter sua casa própria, comprar seu carro, ir ao salão de beleza, passear nas férias!… Claro que há ainda muita coisa a melhorar, a corrigir, a conquistar. Mas como negar tantos avanços?!
O Brasil passou a ser respeitado lá fora a ponto de seu presidente ser mais esperado no Fórum Mundial, na Suíça, do que o norte-americano, que o chamou de “o cara”. Quem poderia imaginar algo assim?
Muitos reclamam que os projetos sociais são assistencialistas. E alguns são mesmo. Porém, nunca se incentivou tanto a participação cidadã, por meio de cooperativas e associações; conferências e Conselhos. Dizem que estão deixando o povo acomodado com o ‘bolsa-família’. Mas não reclamam dos milhões distribuídos a banqueiros e empresários ‘falidos’.
A valorização da mulher é outra marca do governo Lula cujo sinal mais evidente é a própria Dilma, eleita a primeira mulher presidente do Brasil. Numa sociedade machista e preconceituosa, ela precisou de Lula para chegar lá. Mas, logo depois, mostrou a que veio e que não precisava de padrinho, de sombra. Assumiu soberanamente seu cargo e conta com uma aprovação maior do que a de seu antecessor.
Os negros também foram mais reconhecidos. O próprio Joaquim Barbosa confirma isso ao se tornar o primeiro ministro negro do STF, nomeado por Lula. Apesar do seu “extraordinário currículo profissional e acadêmico, da sua carreira e bela história de superação pessoal, afirma Ramatis Jacino, jamais teria se tornado ministro se o Brasil não tivesse eleito, em 2003, um Presidente da República convicto de que a composição da Suprema Corte precisaria representar a mistura étnica do povo brasileiro”.
A despeito disso, continua Ramatis, o ministro Barbosa, “cumpre exatamente o roteiro escrito pela grande mídia ao optar por condenar não uma prática criminosa, mas um partido e um governo em um julgamento escandalosamente político… Por causa ‘desses serviços prestados’ é alçado aos céus pela mesma mídia que, faz uma década, milita contra todas as iniciativas promotoras da inclusão social”. É, desta forma, “transformado pela mídia em um semideus, que ‘brandindo o cajado da lei, pune os poderosos’”.
Ramatis, no entanto, alerta: muitos que já o lançam, sobretudo nas redes sociais, como primeiro presidente da República negro, podem estar sendo ingênuos e apressados. O seu prestígio dura o tempo que as elites o considerarem a elas favorável e útil, o mais indicado para desmoralizar um governo popular.
Ao que parece, o povo está conseguindo fazer uma leitura de tudo isso. Percebe a distância entre o discurso do STF e da grande mídia e o que está experimentando na prática. O resultado das eleições sinaliza nessa direção. Mas é sempre bom estar de olhos abertos para não engolir tudo o que nos vem de cima. Os detentores do poder têm muita facilidade para nos fazer seus garotos-propaganda, aplaudindo os que nos exploram e rejeitando os parceiros. Há sempre o outro lado da moeda…
Pe. José Antonio de Oliveira