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Carta da 2ª Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce

06 de junho de 2017 Arquidiocese

“Por causa disso a terra há de chorar” (Jr 4,28).

Somos romeiros e romeiras, de Minas Gerais e do Espírito Santo, participantes-testemunhas da Segunda Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce, na qual refletimos sobre o tema: Bacia do Rio Doce, nossa Casa Comum e o lema: Povos, Terra e Águas clamam por Justiça!

Fomos acolhidos no Santuário de Adoração Perpétua São Julião Eymard e na Gruta de Nossa Senhora de Lourdes, na bela cidade de Caratinga que apresenta diversos atrativos naturais, históricos, culturais e religiosos. Entre eles, destacamos a Pedra Itaúna, a Praça da Estação e a Praça Cesário Alvim, na qual está o coreto do arquiteto Oscar Niemayer, a imponente Catedral neogótica de São João Batista, com suas belíssimas pinturas e suas palmeiras imperiais, o centenário Palácio Episcopal, o monumento ao Menino Maluquinho do caratinguense Ziraldo, o Convento dos Carmelitas, o Mosteiro Contemplativo de Nossa Senhora do Rosário e São José, o Seminário Diocesano de Nossa Senhora do Rosário e tantos outros ambientes acolhedores.

Partilhamos com vocês um pouco do que aqui celebramos, anunciamos e, profeticamente, denunciamos.

Somos parte viva da Bacia do Rio Doce, a quinta bacia hidrográfica do Brasil. Suas nascentes localizam-se no Estado de Minas Gerais e, após percorrer mais de 800 km, o Rio Doce encontra o mar no litoral do Espírito Santo. Em seu trajeto, o rio recebe vários afluentes de pequeno e grande porte, como o ribeirão do Carmo, rio Gualaxo, Piranga, Peixe, Piracicaba, Manhuaçu, Caratinga, Matipó, Cuieté, Eme, Santo Antônio, Suaçuí, Urupuca, Itambacurí, Guanhães, Corrente, Resplendor, Guandu, Pancas e Santa Maia do Rio Doce.

No território da diocese de Caratinga está situado o segundo maior pico brasileiro, o Pico da Bandeira, com mais de três mil metros de altitude, na Serra do Caparaó que, com mais de mil nascentes, formam grandes rios afluentes da Bacia do Rio Doce. Desses rios provêm serviços ambientais essenciais para mais de duzentos municípios, compreendendo uma população de aproximadamente dois milhões de pessoas, com destaque para a pesca e água potável usada no abastecimento doméstico, industrial e agrícola.

A Bacia do Rio Doce também apresenta uma elevada diversidade de fauna e flora, únicas no mundo. Suas lagoas marginais embelezam sua paisagem e abrigam grande parte da vida animal e vegetal, específicas dessa região, e que são muito frágeis.

Infelizmente, a Bacia do Rio Doce tem convivido, por décadas, com a voraz exploração econômica, causando impactos negativos ao ambiente e às comunidades humanas.

Um preocupante quadro de degradação ambiental se instalou na bacia, de maneira abrangente e sistêmica, afetando a biodiversidade e a provisão de serviços ambientais.

Somos vítimas do desmatamento das matas ciliares, da construção de barragens hidrelétricas, do despejo de efluentes domésticos e industriais, minerais, do monocultivo de eucalipto, de lavouras de café, da cana de açúcar, do uso indiscriminado de agrotóxicos, do desaparecimento das sementes nativas, sementes crioulas e de muitas outras perturbações.

Como se não bastasse esse conjunto de fatores que, por si só, comprometem o uso dos bens naturais em curto e longo prazo, a Bacia do Rio Doce foi acometida por um gravíssimo crime socioambiental no dia 5 de novembro de 2015, em Mariana – MG, quando a Barragem de rejeitos do Fundão, da mineradora Samarco, se rompeu. Foram despejados diretamente nas águas do Rio Doce 50 milhões de metros cúbicos de rejeitos de minérios, uma composição de argilas e muitos compostos químicos, causando a maior catástrofe deste século, matando 19 pessoas e milhares de outros organismos, peixes, répteis, plantas e animais.

Famílias foram desalojadas e o abastecimento hídrico de algumas cidades ficou seriamente comprometido, afetando atividades produtivas como o comércio, a indústria e a agricultura. Além disso, concentrações de metais pesados como mercúrio, arsênio, ferro e chumbo foram encontradas nas águas do Rio Doce acima do aceitável pelos órgãos ambientais. As consequências negativas para a sociedade foram imediatas.

O sofrimento do Rio Doce deve ser compreendido como o sofrimento da própria sociedade e da criação divina. A escuridão da lama despejou luz sobre os usos e abusos que temos feito com os recursos de água doce, revelando a profunda má gestão dos rios brasileiros. Os maus-tratos recebidos pelo Rio Doce não se restringem a ele, visto que os maiores rios do país encontram-se em elevado nível de degradação ambiental. Novas tragédias podem acontecer a qualquer momento.

Num instante, essa população sentiu o peso da sede e a escassez hídrica, uma lição muito dura, cuja mensagem deve transcender os limites da Bacia do Rio Doce. Agora ficou mais fácil para a população compreender a necessidade de conservar nossos rios e nascentes.

Ainda não se sabe, com precisão, a real extensão dos impactos desse crime no Rio Doce e seus ecossistemas associados.

Acreditamos que esse é o momento certo, oportuno e urgente para que as universidades, centros de pesquisa, demais institutos, respeitando os conhecimentos das populações locais, desenvolvam projetos e ações diretamente voltados à atenuação dos impactos na Bacia Hidrográfica do Rio Doce.

Conscientes dos muitos desafios socioambientais enfrentados, exigimos:

  • Que as populações atingidas sejam ressarcidas economicamente pelas empresas responsáveis em seus irreparáveis prejuízos, e que essas sejam ouvidas, respeitadas e possam exercer livremente seus direitos de cidadania.
  • Que os pescadores, ribeirinhos, agricultores, quilombolas e povos indígenas sejam reconduzidos imediatamente aos seus postos de trabalhos e condições de vida.Que a população de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo sejam protagonistas da reconstrução de suas casas e de suas vidas.
  • Que os governos federais, estaduais e municipais assumam plenamente sua parcela de corresponsabilidade na revitalização da Bacia.
  • Que o poder judiciário cumpra livremente sua função e faça valer a lei e os direitos dos atingidos, pautando suas decisões pelos princípios da ética, da justiça e da equidade.
  • Que as empresas Vale/BPH Billiton e a Samarco sejam verdadeiramente punidas e arquem com todos os custos financeiros na reconstrução plena das condições de vida na Bacia do Rio Doce.
  • Que o grito que vem dos povos, sai da terra e das águas, clamando por justiça, nos desafie a buscar novos modelos de cultivar, produzir, distribuir e consumir, respeitando a sabedoria dos camponeses e indígenas e promovendo novas formas de sustentabilidade, participando de grupos de reflexão, das comissões de meio ambiente em cada comunidade paroquial, de cooperativas, associações, sindicatos, conselhos de cidadania e partidos políticos comprometidos com a defesa dos pobres e da ética.

Lembramo-nos das advertências do profeta Jeremias como um grande alerta: Está louco o meu povo; nem mais me conhece. São filhos insensatos, desprovidos de inteligência, hábeis em praticar o mal, incapazes do bem. Olho para a terra: tudo é caótico e deserto; para o céu: dele desapareceu toda a luz (Jr 4,22-23).

Saibamos cuidar da Bacia do Rio Doce, nossa Casa Comum, para que a terra não fique vazia e deserta, as águas não sequem e os povos possam viver na justiça e na paz.

Busquemos sempre na memória contida na Sagrada Escritura, na qual se baseia a nossa sabedoria, como um pai de família que tira do seu tesouro coisas novas e velhas (Mt 13,52), a orientação para a construção de políticas públicas no campo social e ambiental, na defesa e proteção da vida dos seres humanos e do nosso planeta terra.

Fortalecidos pela fé em Deus, renovamos, com esta Romaria, o compromisso de cultivar e guardar a criação (Gn 2,15), a partir de nossa Bacia do Rio Doce, fazendo-nos instrumentos seus a serviço da vida e da esperança.

E estaremos juntos na Terceira Romaria das Águas e da Terra da Bacia do Rio Doce, na Arquidiocese de Mariana, no dia 3 de junho de 2018, com as bênçãos do Deus Pai/Mãe criador, de Jesus Cristo libertador, do Espírito Santo iluminador, de Nossa Senhora Aparecida, saída das águas e de São Francisco, patrono da ecologia.

Caratinga – MG, 4 de junho de 2017.