sábado

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Carta aos amigos em tempos de coronavírus

21 de março de 2020 Arquidiocese

Caros amigos e amigas, saudação em Cristo Jesus!

Sou o Pe. Geraldo Dias Buziani, sacerdote da Arquidiocese de Mariana, MG, Brasil, e atualmente encontro-me em Roma, para obtenção do doutorado em Sagrada Liturgia, no Pontifício Ateneo Sant’Anselmo. Resido no Pontifício Colégio Pio Brasileiro, juntamente com outros sacerdotes provenientes do nosso país.

Neste tempo da pandemia do coronavírus, escrevo-lhes para partilhar minhas experiências e impressões deste momento vivido aqui na Itália. Faço isso a partir da minha experiência pessoal e do depoimento de sacerdotes e pessoas amigas que se encontram em suas paróquias, no intuito de oferecer alguns elementos para a reflexão e discernimento sobre este momento peculiar da história que vivemos.

Aqui na Itália, já estamos há 10 dias de quarentena em todo o país, e hoje, dia 21 de março, já são contabilizadas 4.032 vítimas fatais, o que significa um número superior de mortos ao da China. Somente nas últimas 24 horas foram contabilizados 627 mortos, número que continua a crescer cada dia. No momento, existem na Itália 37.860 casos positivos, sendo que 7% destes estão em terapia intensiva, o que corresponde a 2. 655 pessoas. Com o trabalho de ampliação do número de UTIs no país, a Itália conta agora com aproximadamente 8.000 postos disponíveis para esta emergência. O número de pessoas curadas é de 5.129. Os dados mostram que o número de contágios está em ascensão e, segundo os estudiosos, o pico de contaminação pelo coronavírus na Itália acontecerá provavelmente daqui a duas semanas. O país não esperava por este golpe que chegou silencioso. A região mais atingida é a Lombardia, de modo especial a cidade de Bérgamo. Foi de lá que vieram as imagens que entristeceram o mundo, nas quais caminhões do exército transportavam corpos para serem cremados em outras cidades, dada a saturação dos fornos crematórios da cidade. É nesta região, cujos hospitais estão saturados, que estão sendo criados novos postos de terapia intensiva, com a colaboração de médicos de outras regiões da Itália, da China e de Cuba. Roma situa-se na região do Lácio, e aqui temos, na data de hoje, 21/03, 1008 casos positivos, destes, 328 estão em isolamento domiciliar, 537 internados, mas não em terapia intensiva, 47 estão em terapia intensiva, 46 mortos e 53 curados. No entanto, os números variam muito, pois a cada momento são descobertos novos focos de disseminação do vírus. A previsão no momento é que a quarentena, prevista para terminar no dia 03 de abril, será prolongada.

Todo o país está com restrições de movimentação, inclusive de uma cidade para outra. Enquanto comunidade de estudantes, nosso colégio segue rigorosamente as orientações do governo. Nestes dias, permanecemos em casa. Os estudos e aulas continuam por meio de plataformas on-line. Em Roma, o transporte público está funcionando e é permitida a movimentação de pessoas somente para ir ao trabalho (quando este não pode ser feito em casa), ao supermercado, farmácia ou hospital. A multa para quem desobedecer, não comprovando diante do fiscal a finalidade da movimentação, chega ao valor de 1000 reais. Somente estes serviços básicos funcionam: correios, bancos, supermercados, padarias e postos de saúde. Porém todos os trabalhadores seguem as normas de segurança, com o respeito da distância de um metro uns dos outros, uso de luvas e máscaras. Tais medidas foram tomadas para diminuir a velocidade do contágio e, com isso, diminuir o número de pessoas que necessitem, ao mesmo tempo, de um aparelho respiratório para sobreviver. Nem todos que contraem o vírus vão para o hospital, a maioria permanece em quarentena por 14 dias na própria casa. Somente quando o quadro avança para insuficiência respiratória é que são encaminhados para um hospital preparado para receber as vítimas, as quais, na sua maioria são idosos com histórico de outras doenças, embora não faltem exemplos de pessoas mais jovens com tal problema. Em qualquer suspeita de contaminação, basta ligar para o médico de família para receber a orientação sobre os procedimentos para o exame. A norma é não ir diretamente para os hospitais a fim de evitar novas contaminações.

Do ponto de vista espiritual, estamos vivendo tudo isto com um sentimento de tristeza, mas ao mesmo tempo, com confiança na graça de Deus que sustenta a fragilidade humana. A Conferência Episcopal Italiana, em comunhão com as orientações do governo, e na consciência da responsabilidade da Igreja na promoção da vida e do bem comum, orientou a suspensão das atividades e celebrações com participação dos fiéis. É um gesto corajoso da Igreja, trata-se de deixar de celebrar com a presença dos fiéis o evento fundante e essencial de nossa existência, enquanto cristãos, que é a Eucaristia, em vista da preservação da vida e da saúde da coletividade. É com pesar que deixamos de celebrar a Eucaristia, mas neste momento, a privação da celebração eucarística com o povo é, paradoxalmente, o sacrifício agradável a Deus. O fato da Igreja não se reunir nestes dias num templo não é demonstração da fraqueza de nossa fé, mas a manifestação de que fé e ciência caminham juntas. A fé e a razão são os dois pulmões com os quais a Igreja deve respirar para prosseguir sua missão de anunciar Jesus como Cristo e Senhor. Respondendo a estes desafios presentes, os sacerdotes adotam meios de manter sua presença junto de seu rebanho neste momento de sofrimento. Além de exéquias celebradas em forma breve e outras necessidades possíveis de serem atendidas com devidos cuidados, de modo criativo, os sacerdotes utilizam os meios de comunicação social para fomentar o aprofundamento bíblico, comentando trechos bíblicos do evangelho do dia; outros preparam subsídios para a celebração dominical da Palavra em família; outros viabilizam a transmissão on-line da celebração dominical da Eucaristia, como forma de manter a participação, pelo menos mental, dos fiéis ao mistério celebrado na igreja paroquial; outros, no domingo, com aparelhos de som potentes, celebram a missa num local aberto e visível, de modo que os fiéis, de seus apartamentos, acompanhem a celebração. O certo é que, de modo corajoso e criativo, os padres estão respondendo ao apelo do papa Francisco de, não obstante os cuidados necessários, manterem-se próximos de seus paroquianos.

Não há como vivermos este tempo de pandemia, que traz para nós o medo da morte, seja a nossa, seja a das pessoas que amamos, sem nos questionarmos e aprofundarmos no mistério do Deus em quem cremos. Creio que este tempo nos convida a purificarmos a imagem de Deus que temos, fazendo com que o rosto do Deus anunciado e revelado por Jesus possa resplandecer em nossas palavras e ações. Por isso, neste contexto, não cabem afirmações de que esta pandemia é castigo de Deus, ou ainda, ela foi permitida por Ele, pois tais visões contrariam um Deus que é Pai, que é amor e faz tudo para salvar seus filhos amados. Um Deus amoroso não permitiria um vírus que causa tanta morte e destruição. É condizente com nossa fé reconhecer que “trabalhando com uma criação em crescimento, Deus trabalha continuamente para libertar-nos do mal que não foi causado ou permitido por Ele, mas faz parte da finitude da criação”. Nesse sentido, Jesus Cristo quer combater este vírus, quer nos preservar e nos defender dele e, por isso, o Espírito Santo está agindo entre nós com todos os meios para este fim. Mas o Senhor não age sozinho, precisa de nós nesta luta, ele precisa da doação dos médicos e enfermeiros, da inteligência da medicina, da orientação segura dos governantes e de cada um de nós em particular. É a sua graça que nos torna potentes e capazes de realizar sua obra. Neste tempo, rezar para que esta epidemia seja vencida reveste-se do sentido de redescobrir em nós o chamado que Deus nos faz de praticar o bem, de acolher a sua graça e agir de modo amoroso com o próximo, para vencermos este mal. A oração é o nosso clamor a Deus na certeza de que não estamos sozinhos nesta batalha. Assim sendo, é obra de Deus em nós o ato de permanecer em casa, de ajudar um idoso em suas compras, para que ele não precise ir ao mercado, de rezar juntos o terço em família, de reforçar os hábitos de higiene, de reconhecer o outro não como inimigo, mas como irmão. Para vencermos esta epidemia é, portanto, necessária uma ação conjunta, divina e humana, fundamentada no amor e na responsabilidade comum. O vírus não conhece fronteiras e precisamos reconhecer que o mundo é uma única comunidade.

Do ponto de vista da organização social, depois de responder às necessidades médicas, o governo está agindo no sentido de colaborar com trabalhadores, pequenas e grandes empresas para evitar maiores problemas do ponto de vista de prejuízos econômicos e desemprego. O cenário exige uma colaboração mútua, diálogo, generosidade e capacidade de renúncia para dividir com equidade o peso da crise econômica atual. É preciso empenho de todos para a preservação das fontes de trabalho. Este é também um aspecto importante para o qual devemos estar atentos neste momento.

Por fim, conclamo a todos os brasileiros amigos e amigas para viverem este tempo com serenidade e confiança no Ressuscitado, seguindo rigorosamente as normas e orientações dadas pelas autoridades, pois o cenário é preocupante. Não podemos, com palavras e atitudes irresponsáveis, nem aumentar ou diminuir o perigo. Deus abençoe as equipes de saúde da família dos municípios, as quais terão papel importante neste trabalho de enfrentamento do coronavírus. Deus ilumine e fortaleça os médicos e enfermeiros, os quais serão como que anjos a acompanharem muitos irmãos e irmãs, impossibilitados de terem por perto seus familiares, no último suspiro de suas vidas. Sabedoria e força de comando às autoridades, de modo especial aos prefeitos, os quais estarão na linha de frente no combate desta epidemia. O Senhor cumule de graças especiais, neste tempo em que somos chamados a viver mais intensamente como “Igreja doméstica”, os bispos, sacerdotes religiosos e religiosas, leigos e leigas para serem neste momento, de modo particular, “sal da terra e luz do mundo”. Que a certeza do amor de Deus nos renove a cada dia e a palavra do nosso Mestre e Senhor console nossos corações e nos faça prosseguir na esperança: “Coragem! Sou eu. Não tenhais medo”. Mt 14, 27.

Em Cristo,

Pe. Geraldo Dias Buziani

Roma, 21/03/2020