sexta-feira

, 27 de dezembro de 2024

Presidente do Cimi denuncia retrocessos no cenário político indigenista no Brasil

19 de abril de 2021 Igreja no Brasil

“O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações de direitos humanos dos povos indígenas”. A afirmação foi feita por dom Roque Paloschi, arcebispo de Porto Velho, Rondônia, e presidente do Conselho Indigenista Missionário (Cimi), na sexta-feira, 16, durante a 58ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). O Cimi é um dos organismos vinculados à CNBB.

Pela primeira vez realizada de forma online, em razão da pandemia, a 58ª Assembleia Geral da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (AGCNBB) aconteceu de segunda-feira, 12 de abril, encerrando na tarde da sexta, 16. Durante os cinco dias estiveram reunidos, de forma virtual, cerca de 400 pessoas, entre cardeais, arcebispos, bispos diocesanos e auxiliares, coadjutores, além dos bispos eméritos e representantes de organismos e pastorais da Igreja.

“Os ataques de setores anti-indígena aliados nos três poderes do Estado brasileiro têm sido uma constante, as falas e ações do presidente da República destacam-se a ignorância, o preconceito, discriminação e violência contra os indígenas”, denunciou o arcebispo.

Ainda em março de 2020, as equipes do Cimi se retiraram de forma presencial das aldeias, estabelecendo novas formas de se comunicar com as lideranças e territórios, mantendo sua presença solidária e comprometida. “Os indígenas, com muita tristeza, têm relatado a perca de verdadeiras bibliotecas vivas, com a morte dos mais velhos”, destacou o religioso em diálogo sobre pandemia da covid-19.

Segundo dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), em 16 de abril, 52.448 indígenas já foram infectados pelo coronavírus e 1.038 indígenas perderam a vida para a covid-19, alcançando 163 povos. A disseminação do vírus entres os indígenas só não foi maior por iniciativa das lideranças de fechar o acesso aos territórios. Além da pandemia, os indígenas enfrentam a omissão do Estado e aumento das invasões, grilagem e exploração ilegal de suas terras tradicionais.

Dom Roque ainda destacou em seu discurso o conjunto de projetos de leis que tramitam no Congresso que afrontam o direito e soberania dos povos indígenas, as instruções normativas editadas pela Fundação Nacional do Índio (Funai), e a estratégia do Ministro de Meio Ambiente, Ricardo Salles de aproveitar a pandemia “para passar a boiada”.

“Nesta situação de ataque e desrespeito aos direitos dos povos indígenas por parte dos poderes executivo e legislativo, os povos indígenas têm se amparado cada vez mais no poder judiciário”, lembra o presidente do Cimi, chamando atenção para a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709) e ao Recurso Extraordinário (RE) 1.017365, de repercussão geral que discute os direitos constitucionais dos povos indígenas.

“Com o desrespeito aos direitos dos povos indígenas por parte dos poderes executivo e legislativo, os povos indígenas têm se amparado cada vez mais no poder judiciário”.

Confira o discurso de dom Roque:

Prezados Irmãos,

O Conselho Indigenista Missionário vem agradecer imensamente o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, a este Conselho e aos Povos Indígenas na sua luta pelo Bem Viver. O cenário político indigenista vivido no Brasil é de retrocesso, com o agravamento das violações de direitos humanos dos Povos Indígenas, principalmente no que se refere a regularização dos seus territórios.

Neste período de pandemia do novo coronavírus, tivemos que nos retirar das aldeias, do convívio presencial com os indígenas para preservar as vidas dos nossos irmãos indígenas. A falta da nossa presença tem sido bastante sentida por nós e pelos indígenas. O Conselho Indigenista Missionário tem como missão essa presença solidária e comprometida.

A pandemia que já vitimou mais 350 mil vidas de brasileiros e brasileiras, chegou às aldeias vitimando, até o momento, mais de mil indígenas com a covid-19, e mais de 50 mil infectados com o coronavírus. Os indígenas, com muita tristeza, têm relatado a perca de verdadeiras bibliotecas vivas, com a morte dos mais velhos. A tragédia não foi maior porque os indígenas tomaram a iniciativa de fechar o acesso aos territórios. Além da pandemia, os indígenas enfrentam a omissão e a falta de diálogo do atual governo. Os ataques de setores anti-indígena aliados nos três poderes do Estado brasileiro têm sido uma constante. Nas falas e nas ações do presidente da República com relação aos indígenas destacam-se a ignorância, o preconceito, a discriminação, a violência. Ele tem dito que “não existe povo indígena no Brasil”, que “não demarca um centímetro de terra indígena”, que os “índios em seus territórios são como animais no zoológico”, que para “serem humanos têm que se integrar à sociedade” e suas terras devem ser exploradas economicamente por empresas. Em discurso na ONU, ele disse que as “queimadas eram culpa dos indígenas e caboclos da Amazônia”. Portanto, a eleição de 2018, fortaleceu a bancada ruralista e evangélica fundamentalista, assumindo vários postos de comando no governo, como a Funai, o Ministério da Justiça, INCRA, IBAMA, ICMBIO, Fundação Palmares e tantos outros, com pessoas de posicionamento antagônico aos povos indígenas, quilombolas e demais comunidades tradicionais. A Funai e o Ministério da Justiça têm papel fundamental na condução dos procedimentos administrativos de demarcação das terras indígenas, o que não está ocorrendo, nestes últimos dois anos nenhum processo administrativo de regularização dos territórios foi iniciado e os que estavam em curso foram paralisados em benefício de setores anti-indígena.

Ao realizar o Sínodo da Amazônia, o Santo Padre chama a atenção para a importância da Região, o seu bioma e principalmente o seu povo originário e tradicional. A riqueza e a necessidade de preservar este ambiente para o futuro da vida no planeta. Infelizmente, no nosso Relatório de Violência com os dados de 2019, constatamos uma realidade perversa e preocupante, onde intensificaram-se as expropriações de terras indígenas, forjadas na invasão, na grilagem, no loteamento, de forma rápida e agressiva contra os povos originários e tradicionais na Amazônia e em todo o território nacional. Essa concepção perversa de governar tem causado uma destruição inestimável, impactando a vida dos povos indígenas e a proteção do meio ambiente.

No território do Povo Yanomami, a invasão chega a mais de 15 mil garimpeiros, o mesmo acontecendo no território Raposa Serra do Sol, no estado de Roraima. No Vale do Javari/AM, onde existe a maior população de Povos Isolados do mundo, as invasões são uma constante numa dinâmica de verdadeiro genocídio. No Mato Grosso do Sul os conflitos e violência contra os Guarany e Terena são constantes. No Sul do Brasil a agressão contra os Kaingang, Xokleng e Guarany se amplia levando esses povos a situação de calamidade. Em Rondônia, as invasões e grilagem do território Uru-Eu-Wau-Wau e no território Karipuna são extremamente graves, obrigando os isolados a saírem à busca de alimentos; numa dessas saídas, foi vítima o indigenista Rielle Franciscato, no encontro com um grupo de isolados, que sentiram-se amedrontados com a presença e o avanço de não indígenas em suas terras. No Mato Grosso, os territórios Xavante e Kayapó são constantemente invadidos por garimpeiros. No estado do Pará, está se dando uma das maiores tragédias do país – os territórios dos Povos Munduruku, Kayapó e Arara vêm sendo sistematicamente invadidos por garimpeiros incentivados por agentes do governo como, ministro de estado, prefeitos, deputados, senadores em busca do ouro. Os invasores utilizam o mercúrio no processo da garimpagem, que tem contaminado principalmente o Povo Munduruku e o Povo Kayapó. Os indígenas têm denunciado até em âmbito internacional a invasão dos seus territórios, a contaminação das águas dos rios e da sua base alimentar que são os peixes, provocando graves doenças. Essa tragédia poderá se espalhar por toda a região sudoeste do Pará e até a população da capital, Belém, que consome peixe daquela região. Toda a geração atual e futura do povo Munduruku está em risco. Recentemente, morreu acometido por doença degenerativa o jovem ex-missionário do Cimi, Cássio, que atuava com o povo Munduruku, contaminado pelo mercúrio. Cássio tinha apenas 35 anos de idade. Diante desse cenário de destruição e morte, o presidente da República junto com os seus ministros, tem se reunido com os setores do garimpo e do agronegócio para apoiar as invasões e articular ações do executivo e medidas legislativas contra os povos indígenas.

Em fevereiro de 2020, o governo enviou à Câmara Federal o Projeto de Lei – PL191, para regulamentar a pesquisa e a exploração de recursos minerais, o garimpo, a extração de hidrocarbonetos e o aproveitamento de recursos hídricos para geração de energia elétrica em terras indígenas. A aprovação neste ano desse projeto fez parte da negociação com a bancada ruralista para o apoio à eleição da nova mesa diretora da Câmara dos Deputados. Também está no pacote a PEC 215 e o PL 490 que visam mudar totalmente os artigos constitucionais que concebem os direitos dos povos indígenas no Brasil.

Aproveitando a pandemia “para passar a boiada”, a Funai em 2020 editou Instrução Normativa – IN/09, que possibilita a certificação de imóveis dentro de territórios indígenas ainda não regularizados. Também em 2021, a Resolução 04/21 que concebe outras normas de heteroidentificação de indígenas no Brasil. E, seguindo a toada, em 22/02, editou a Instrução Normativa Conjunta (Funai – Ibama) INC/21, que concebe o licenciamento ambiental para empreendimentos em terras indígenas.

A IN 09, já foi derrubada em 15 estados, por ações impetradas pelo MPF, e a Resolução 04, foi suspensa pelo STF no final de março/21, através do Ministro Luís Roberto Barroso. A INC 01, provavelmente, vai também no mesmo caminho do questionamento judicial, todas por incorrer em flagrante desrespeito aos direitos constitucionais dos povos indígenas.

Nesta situação de ataque e desrespeito aos direitos dos povos indígenas por parte dos poderes executivo e legislativo, os povos indígenas têm se amparado cada vez mais no poder judiciário. Com o apoio do MPF nas regiões, muitas ações têm sido deferidas em favor dos povos indígenas. No STJ e no STF também algumas vitórias e esperanças têm se concretizado. Em 2020, o Ministro Edson Fachin deferiu liminar suspendendo as reintegrações de posse contra os povos indígenas em todo o Brasil enquanto perdurar a pandemia. Também o Ministro Luís Roberto Barroso deferiu em favor dos povos indígenas a ADPF 709, que obriga o governo a estabelecer um plano emergência para evitar e combater o contágio e os efeitos da Covid-19 e a proteção dos territórios dos povos indígenas no Brasil. É importante salientar que, no Programa Nacional de Imunização-PNI, o governo federal concebe, como grupo prioritário, a vacinação de apenas 410 mil indígenas, sendo que no Censo de 2010 foi quantificada a existência de 890 mil indígenas no Brasil. Foi importante a movimentação feita pelo Ministro Edson Fachin no final de 2020, colocando na pauta de votação do STF o Recurso Extraordinário – RE 1.017,365, de repercussão geral. O Ministro Luís Fux, em movimento contrário, retirou-o de pauta próximo ao julgamento. Este RE discute os direitos constitucionais dos povos indígenas, a partir de duas teses: o Marco Temporal, defendido pelos ruralistas, que restringe os direitos dos povos indígenas a terem seus territórios demarcados se estivessem em sua posse em 5 de outubro de 1988. De outro lado, a teoria do Indigenato, que vem desde o período colonial e que é seguida na própria Constituição de 1988 que concebe aos povos indígenas “os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”. Portanto, o que está em jogo neste julgamento é o direito mais fundamental dos povos indígenas no Brasil, que é o direito à terra. Temos o objetivo de continuar a incidência no STF para que este julgamento aconteça neste ano de 2021. Para tanto, reconhecemos e agradecemos imensamente o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB, que tem sido muito importante na defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil.

No mais, a pandemia tem nos colocado desafios na continuidade do apoio aos irmãos indígenas, mas o compromisso da missão e a solidariedade têm prevalecido; as ações emergenciais em 2020 e 2021, com as contribuições de alimentos, produtos de higiene, limpeza e proteção individual, têm ajudado a salvar vidas em todas as aldeias no Brasil.

Recebam os agradecimentos dos nossos missionários e missionárias, assessorias, funcionários, nesta missão solidária e comprometida com a luta de um povo, mas que é esperança para todo o Povo Brasileiro.

Dom Roque Paloschi
Arcebispo de Porto Velho, Rondônia
Presidente do Conselho Indigenista Missionário – Cimi

Texto: CNBB

Foto: Cimi